Nota de repúdio ao Projeto de Lei nº 454/2023

Descrição: Card com fundo amarelo-mostarda. Na parte superior, em um bloco vermelho-escuro, em caixa alta, lê-se "CARTA CONJUNTA VNDI/ABRAÇA/UNEAFRO". Abaixo, lê-se "Porque defendemos o VETO ao PL nº 454/2023 e porque ele pode ser prejudicial à Educação Inclusiva no Estado de São Paulo". No rodapé, em um fundo branco, os logotipos do VNDI, da ABRAÇA, da UNEAFRO..

NOTA DE REPÚDIO pelo arquivamento da propositura do Projeto de Lei 454/2023,que permite a presença do Atendente Terapêutico no ambiente escolar. Que se apresenta para sanção em regime de urgência sem consulta pública com a sociedade Civil, profissionais da educação e pessoas com deficiências.

Nós, organizações de pessoas com deficiência e de defesa da educação inclusiva, solicitamos que o Projeto de Lei supracitado, o qual fora aprovado a 8 de agosto último durante a 25ª Sessão Extraordinária da Legislatura 2023-2027 da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, uma vez que a referida propositura fere a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD, ratificada no Brasil com status de Emenda Constitucional por meio do Decreto Federal nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, pois retoma o modelo biomédico da deficiência, superado desde o acontecimento da convenção. O referido projeto determina que seja permitida a atuação de um Acompanhante Terapêutico (AT) no ambiente escolar, sem haver vinculação funcional com o corpo pedagógico, suscitando, ademais, toda sorte de problemas estruturais, nomeadamente: (i) intervenção terapêutica no ambiente escolar; (ii) atuação de profissional estranho e desvinculado dos objetivos pedagógicos e não subordinado à gestão pedagógica; (iii) direcionamento de política pública para uma metodologia terapêutica questionável; e (iv) desigualdade nos recursos da inclusão, dada a inexistência de previsão legal ou orçamentária para custeio de tal profissional de apoio.

A política de educação inclusiva compreende o espaço escolar como sendo distinto de espaços terapêuticos. Não obstante à importância da articulação e do diálogo entre as políticas e equipes de saúde e de educação, numa perspectiva intersetorial, a escola é espaço privilegiado dos saberes pedagógicos, com o propósito de proporcionar um ambiente de aprendizado diversificado e enriquecedor para todos os alunos. Essa colaboração deve ser cuidadosamente equilibrada para que a ênfase na educação e desenvolvimento não seja eclipsada pela abordagem terapêutica. A inclusão educacional não consiste em proporcionar serviços de terapia, todavia em criar um ambiente onde todos os alunos possam se engajar ativamente no aprendizado, interagir com colegas e professores, e contribuir para a comunidade escolar.

Da maneira como foi apresentado, o Projeto de Lei nº 454/2023 dá a entender que a deficiência seria uma condição individual, mal compreendida pela comunidade escolar e que, ao enfrentarmos dificuldades no contato com as pessoas com deficiência, seguimos pelo caminho óbvio: o de demandar uma pessoa (na família, a mãe, na escola, o AT) agindo como prótese, apêndice do corpo cujo movimento, comunicação, expressão, comportamento ou raciocínio não alcançamos. Assim, tomamos não só a pessoa com deficiência como objeto ‘defeituoso’, mas também o Atendente Terapêutico como objeto-parte, cuja função é assumir para si as funções que se queriam presentes, e desresponsabilizar a escola e o coletivo da produção de laços que assumem a interdependência como princípio, e a cooperação como ética compartilhada.

Outro ponto importante é a previsão de laudo para garantia de suporte educacional à pessoa autista, o que constitui ato ilegal e discriminatório, ferindo o que “preconiza” a Nota Técnica nº 4/2014/MEC/SECADI/DPEE, de 23 de janeiro de 2014, além de aprofundar desigualdades já enfrentadas pelas crianças negras ou periféricas autistas no acesso à saúde, diagnóstico e laudo.

Conforme essas diretrizes, o projeto político-pedagógico da escola comum deve prever a oferta do Atendimento Educacional Especializado, complementar à escolarização. É importante observar que a Resolução CNE/CEB nº 4, de 13 de julho de 2010, do Conselho Nacional de Educação, enfatiza a diferença entre a função do professor da classe comum, atribuindo ao AEE o ensino do uso dos recursos de tecnologia assistiva, entre outras atividades.

Temos, também, a Nota Técnica MEC/SECADI/DPEE nº 24, de 21 de março de 2013 que aborda o assunto: Orientação aos Sistemas de Ensino para a implementação da Lei nº 12.764/2012 (institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista). Essa Nota de n.24, enfatiza que os objetivos da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva estão plenamente contemplados, destacamos o Art. 3º:

No art. 3º, parágrafo único, a referida lei assegura aos estudantes com Transtorno do Espectro Autista o direito à acompanhante desde que comprovada sua necessidade. Esse serviço deve ser compreendido à luz do conceito de adaptação razoável que, de acordo com o Art. 2º da CDPD (ONU/2006), são:

“[…] as modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.”

O serviço do profissional de apoio, como uma medida a ser adotada pelos sistemas de ensino no contexto educacional deve ser disponibilizado sempre que identificada a necessidade individual do estudante, visando à acessibilidade às comunicações e à atenção aos cuidados pessoais de alimentação, higiene e locomoção. Dentre os aspectos a serem observados na oferta desse serviço educacional, destaca-se que esse apoio:

“(…) Destina-se aos estudantes que não realizam as atividades de alimentação, higiene, comunicação ou locomoção com autonomia e independência, possibilitando seu desenvolvimento pessoal e social; Justifica-se quando a necessidade específica do estudante não for atendida no contexto geral dos cuidados disponibilizados aos demais estudantes; Não é substitutivo à escolarização ou ao atendimento educacional especializado, mas articula-se às atividades da aula comum, da sala de recursos multifuncionais e demais atividades escolares; Deve ser periodicamente avaliado pela escola, juntamente com a família, quanto a sua efetividade e necessidade de continuidade. A organização dos serviços de apoio deve ser prevista pelos sistemas de ensino, considerando que os estudantes com transtorno do espectro autista devem ter oportunidade de desenvolvimento pessoal e social, que considere suas potencialidades, bem como não restrinja sua participação em determinados ambientes e atividades com base na deficiência. No processo de inclusão escolar dos estudantes com transtorno do espectro autista é fundamental a articulação entre o ensino comum, os demais serviços e atividades da escola e o ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO – AEE. (…)”

Estamos em consonância com o CONSELHO NACIONAL DE PROCURADORES GERAIS – COMISSÃO PERMANENTE DE EDUCAÇÃO – COPEDUC que profere no Enunciado no 22/2022 a seguinte análise:

“(…) A análise sobre a necessidade de oferta de profissional de apoio escolar ou acompanhante especializado deve se dar na perspectiva do conceito social de deficiência, preconizado pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, e no bojo da elaboração de plano individual de atendimento educacional especializado, não sendo laudo ou prescrição médica fundamento para tal fim, pois essa análise é de cunho estritamente educacional. Assim, as estratégias pedagógicas e de acessibilidade deverão ser adotadas pela escola, favorecendo as condições de participação e de aprendizagem, conforme Notas Técnicas nº 19, de 8 de setembro de 2010, e de n° 24, de 21 de março de 2013, do Ministério da Educação (MEC).(…)”

O Acompanhante Especializado está previsto do parágrafo único do Art. 3º da Lei Federal nº 12.764, de 2012, e sua função está subentendida no Art. 4º §2º do Decreto Federal nº 8.368/14, que seria o de cuidar da higiene pessoal, alimentação, desenvolvimento da linguagem e promover a interação social dessa criança:

§ 2º Caso seja comprovada a necessidade de apoio às atividades de comunicação, interação social, locomoção, alimentação e cuidados pessoais, a instituição de ensino em que a pessoa com transtorno do espectro autista ou com outra deficiência estiver matriculada disponibilizará acompanhante especializado no contexto escolar, nos termos do parágrafo único do art. 3º da Lei Federal nº 12.764, de 2012.

Existe uma distinção inequívoca quando se trata da atuação de um Acompanhante Especializado e de um Atendente Terapêutico. A legislação em vigor ao tratar da educação escolar assegura, quando necessário para atender as especificidades do estudante com TEA, o Acompanhante Especializado, não descaracterizando, portanto, a função da escola como ambiente privilegiado para promover interações e aprendizagem. O CME SP ao tratar sobre as “Diretrizes Gerais para a Educação Especial na Perspectiva Inclusiva com Abordagem Específica na Rede Municipal de São Paulo” na Recomendação CME nº 2/2022, reforça a importância da função da escola e a incompatibilidade do Atendimento Terapêutico ser realizado no espaço escolar.

[…]Considerando que a escola tem função pedagógica – e não clínica – […] é responsabilidade do Professor de Atendimento Educacional Especializado, que, dentre outras atribuições, deve realizar o estudo de caso, fazer a articulação com os profissionais da escola e estabelecer parcerias com profissionais que atendem o estudante, como o AT. Esse trabalho tem por objetivo eliminar as barreiras que o estudante pode enfrentar no ambiente escolar, sendo a contribuição dos profissionais da saúde bem-vinda, porém, é fundamental explicitar que o atendimento terapêutico, no espaço escolar, conflita com os pressupostos da educação e contraria os princípios expressos na Política de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva (em âmbito nacional e municipal).

Por essa razão, reafirmamos nosso posicionamento contrário ao referido projeto e colocamo-nos à disposição da Assembleia Legislativa e do Poder Executivo do Estado de São Paulo para dialogar no sentido de construir caminhos, a partir dos mecanismos já garantidos pelo arcabouço legal brasileiro, para reverter o abandono e a falta de investimentos nas escolas públicas, que resultam nas barreiras enfrentadas para a inclusão escolar, bem como para propor aprimoramentos a partir da ampla participação social de pessoas com deficiência, também resguardada constitucionalmente, bem como dos professores e profissionais do campo da Educação.

Quanto ao referido Projeto de Lei, não vemos outra alternativa que não seja o veto de vossa excelência.

Sem mais, agradecemos antecipadamente a disponibilidade.

Subscrevem essa nota:

  • Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas – ABRAÇA – Núcleo Estadual São Paulo (SP)
  • Coletivo Feminista Helen Keller
  • Vidas Negras com Deficiência Importam – VNDI
  • UNEAFRO
  • Instituto Cauê
  • Mães Autismo
  • Fundo Agbara
  • Prefeitura SCS
  • ANASO (Associação Nacional dos Surdos Oralizados)
  • UFMS
  • CONSELHO MUNICIPAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA -SP
  • Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas
  • CEERT- Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT
  • Associação das pessoas deficientes de Jaguariúna
  • ABRANEURODIVERSIDADE
  • Rede Itinerante de Mulheres Atuantes
  • Associação Somos Santinho
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